“O Cortador de Hóstias”, romance de Clara Dawn é uma obra marcada por camadas de dor, lucidez e beleza brutal. Ambientada em uma paisagem do interior goiano marcada por pobreza, religiosidade autoritária e estruturas patriarcais, a narrativa se debruça sobre a trajetória de Flor Maria, uma menina vendida pelo próprio pai ainda na infância, e que carrega consigo as cicatrizes das violências sofridas — físicas, sexuais, emocionais e simbólicas.
O texto transita entre as vozes de diferentes personagens: Flor Maria, Ramiro Santiago, o cortador de hóstias, o reverendo Venceslau e outros, compondo um mosaico de experiências humanas que desnudam as engrenagens do abuso, da omissão, da hipocrisia religiosa, da exploração sexual de meninas pobres e da perpetuação do patriarcado colonial no Brasil.
A obra entrelaça ficção e denúncia, memória e fabulação, realidade histórica e invenção literária, tendo como cenário a Serra dos Pireneus em Pirenópolis – Goiás. A linguagem é intensa, poética, por vezes alucinatória, marcada por metáforas de forte carga sensorial, com cheiros, texturas, silêncios e ruídos da terra e do corpo feminino.
A obra escancara o ciclo de violência sexual e emocional que se repete por gerações, travestido de costumes, tradições e “destino” das mulheres pobres. As filhas são vendidas, como se fossem parte da criação de porcos e galinhas, sem direito à infância, nome ou proteção. A narrativa mostra como essa estrutura se mantém sob o silêncio coletivo, a cumplicidade social e a cegueira proposital da religiosidade opressiva.
Flor Maria, como suas irmãs e sua mãe, é um corpo negociado. A obra denuncia como o valor da mulher é calculado com base em sua “utilidade” para os homens — seja como objeto de prazer, reprodutora ou empregada submissa. A dor das mulheres é invisibilizada, e mesmo as que tentam sobreviver à própria história são culpabilizadas, silenciadas ou tidas como “loucas”.
A religião é retratada como instituição contraditória: ao mesmo tempo que promete redenção, perpetua o abuso por meio da moral hipócrita. O personagem Venceslau, por exemplo, vive o conflito entre seus desejos e a repressão imposta pela fé. A figura do “cortador de hóstias” simboliza a perversão do sagrado — um homem que mutila o corpo de Cristo enquanto devora o corpo das meninas. A metáfora é poderosa: o sagrado e o profano se misturam, revelando a podridão por trás da santidade institucionalizada.
A criança é, ao longo de todo o romance, uma figura fragilizada e devorada. Flor, suas irmãs, as meninas da casa de Valéria, todas são corpos invadidos — por mãos, olhares, palavras e omissões. A obra denuncia, com lirismo e brutalidade, o extermínio da infância, a destruição da alma infantil e a naturalização do sofrimento precoce.
Apesar de toda a violência, há resistência na linguagem de Flor Maria. Sua escrita — mesmo quando narrada por outrem — é atravessada de lucidez, sarcasmo e ironia. Ela nomeia o indizível, rasga o silêncio e transforma o horror em narrativa. Essa é sua forma de existir: escrever para lembrar, escrever para sobreviver, escrever para, talvez, um dia, amar.
Em suma: O Cortador de Hóstias é um grito sussurrado, uma cicatriz aberta e pulsante na literatura brasileira contemporânea. É um instrumento de denúncia e também de arte sublime. Ele toca em temas silenciados — como a pedofilia institucional, o abuso religioso, a misoginia estrutural e o apagamento da mulher negra e pobre — com uma voz que é ferida e faca ao mesmo tempo. É uma obra que sangra, mas também semeia. Que provoca horror, mas também espanto poético. Uma literatura que serve de espelho, denúncia e gesto de cura — ainda que a cura nunca seja plena.
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