Ao
tentar fugir de tudo e de todos, eu descobri que não se pode fugir dos próprios
pés. Esses pés adaptados às rotinas de uma vida sem grandes serventias à
humanidade. Então eu mergulhei na inércia física, meu corpo ficou um pouco
obtuso, sim deveras, e eu tive vontade de ser triste e só. Triste e sozinha -
longe de ‘todos’.
Mas
como eu fugiria de tudo e de todos? E se eu ficasse, como extravasaria a minha
quase insuportável ânsia de viver partindo?
Enquanto
tento produzir este texto, o desejo de partir invade o meu coração, atreve-se
ao transbordamento por meio de palavras que não quero descrever e depois
adormece sob as ondas do som mecânico do velho teclado da máquina de escrever.
Ora,
um computador não tem romantismo algum, por isso prefiro imaginar que ainda escrevo
numa daquelas máquinas antigas, dos tempos onde pensar exigia esforço e
escrever, muita atenção.
Enquanto
eu arrumava o papel no rolo da máquina
vislumbrei as janelas de minha casa. Tantas janelas? Uma casa tem seus olhos e
ouvidos. E é de fato lamentável que eu não possua asas para voar por uma
daquelas janelas: aquela que insiste em ficar aberta à espera dos empréstimos de
uma luz qualquer.
O
barulho do teclado: tec, tec, tec... e o meu olhar ainda fixo no escancarado da
janela. Atrás da máquina, eu, um espectro na cupidez da essência artística. De
repente os meus olhos enxergaram a folha de papel lânguida com sua marchadela
triste... Slap! Arrebatei a folha da
máquina e num instante a transformei
numa bola de papel.
Bolas
de papel. O cesto de lixo está cheio delas. Às vezes tenho a impressão de que o
passado não é passado. Sinto-me um pouco
estranha ao apoderar-se de mim esse dejavù. É como se eu já tivesse feito
aquilo antes... Quando jogo algo na lixeira, mesmo que não seja uma bola de
papel, é uma bola de papel que eu jogo na lixeira.
Coloco
outra folha no rolo e giro a alavanca. Elevo a fita para gravar uma letra
maiúscula e com a outra mão avanço no rolo -
e rola o rolo - Por alguns
instantes esqueço a janela para fixar os olhos no texto. Leio-o. Tantos erros.
De novo arranco o papel do rolo e faço outra bola e a encesto.
Tudo
de novo, sem “copy” nem “del”? Tantos erros? É importante separar os erros
inócuos dos deléveis. A janela ainda está aberta. A casa permanece a observar
com grandes olhos e ouvidos atentos. O tempo avança os ponteiros do relógio e a
pobre lixeira vomita bolas de papel.
A
janela expõe a sua boca... Há ali, uma garganta esperando tragar pés alados. Já
tentei fugir outras vezes e não consegui, pois os pés não possuem asas, estão
acorrentados à ‘insustentável leveza do ser’.
Desmanchei
uma bola de papel e a alisei sobre a mesa com a ideia de livrá-la do amarrotado
intencional. Como uma última peça de quebra-cabeça que parecia não
encaixar - e de repente se encaixa
naturalmente - vi com nitidez que o erro fora a minha salvação. O mais perfeito
erro que eu já cometera. Não o teria cometido se tivesse deliberado a tristeza
e a solidão. Porque na maioria das vezes, a vida que nos escolhe pode ser bem
melhor do que a vida que a gente sonha em viver.
Assim
retornei a folha de papel à máquina e
tamborilei o teclado freneticamente sem olhar para a janela. Naquele instante
eu decidi: já que não se pode fugir dos próprios pés, pois estes pertencem ao
corpo e o corpo à casa; e a casa às obrigações para com os meus; joguei-me
entre as teclas, e a partir de então, depositei na escrita toda a minha ânsia
de viver partindo.
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